Foi
uma vergonha. A menos de dois meses da Rio+20, a Conferência da ONU sobre
Desenvolvimento Sustentável, a Câmara dos Deputados aprovou um Código Florestal
que põe em risco a preservação das florestas brasileiras e passa por cima dos
avanços ambientais das últimas décadas, como a obrigação de reflorestamento e
as multas a quem desmatou áreas de preservação. A bancada do agronegócio fez o
que quis com o texto e desfigurou o projeto aprovado no Senado, que era
defendido pelo Palácio do Planalto. Impôs uma dura derrota ao governo. “Foi a
vitória do atraso”, definiu o diretor do Greenpeace no Brasil, Paulo Adário “Os
ruralistas estão divorciados da opinião pública e é fundamental que a
presidenta vete o texto. Vamos batalhar por um projeto de iniciativa popular de
desmatamento zero.” Para o bem do futuro e da imagem do País, a reação da
presidenta Dilma Rousseff veio rápida. Por telefone, ela avisou ao líder
governista Arlindo Chinaglia (PT-SP) que está disposta a vetar trechos que
ameacem as florestas. “Não vou, em hipótese alguma, permitir anistia a desmatadores”,
advertiu a presidenta. Em nome de Dilma, a ministra das Relações
Institucionais, Ideli Salvatti, confirmou a firme disposição do Planalto:
“Lamento o rompimento do acordo. Aquilo que representar anistia não terá
respaldo do governo.” A presidenta Dilma ficou profundamente
irritada com as alterações feitas pelo relator, deputado Paulo Piau (PMDB-MG),
no projeto aprovado pelo Senado no ano passado. Ao ler o novo texto e analisar
as 21 mudanças da lavra de Piau, Dilma antecipou que considera inadmissível a
possibilidade de o agronegócio avançar em áreas de florestas protegidas e o fim
das punições aplicadas aos produtores que descumpriram a legislação ambiental.
Na avaliação do governo, a proposta aprovada na Câmara feriu todos os acordos
políticos e colocou em suspeição as relações do Executivo com a própria base
aliada. O texto do relator recebeu 284 votos a favor, 71 dos quais saíram da
bancada do PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer. Foi uma demonstração
de força do agronegócio, que financiou quase metade dos deputados federais
eleitos em 2010. Os ruralistas bancaram, inclusive, a campanha do próprio Paulo
Piau. “Houve tantos absurdos que a escolha do relator foi apenas mais um deles.
A nossa esperança agora é de que a palavra final será da presidenta Dilma.
Esperamos que ela vete diversos trechos desse Código”, afirmou o deputado
Sarney Filho (PV-MA). Esta
semana, a presidenta recebe o texto aprovado pelos deputados e começará a
analisar os itens que serão vetados. Vai contar com a ajuda da ministra do Meio
Ambiente, Izabella Teixeira, para avaliar os riscos de cada artigo para o
futuro das florestas. A ministra acredita que vários rios estão fadados à
extinção, caso o projeto permaneça como está. Durante as negociações com a
Câmara, Izabella tentou convencer integrantes da base de apoio do governo a
votar de acordo com o projeto do Senado. Mas fracassou, embora tenha antecipado
aos parlamentares que os vetos presidenciais viriam. Na mesma linha, o ministro
da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, disse que era “público e
notório” que o governo esperava um resultado que confirmasse o que havia sido
acordado no Senado. “Como o direito de veto nos é dado pela Constituição, a
presidenta vai analisar a questão com muita serenidade, sem animosidade”,
avisou Carvalho. Ele lembrou que Dilma, durante a campanha eleitoral, assinou
um documento dizendo que não apoiaria brechas para novos desmatamentos. “Os
compromissos que ela assumiu serão os parâmetros que irão nos orientar”,
completou.
A declaração de Carvalho foi um alívio
para ambientalistas que citam a toda hora o compromisso assumido por Dilma com
a preservação do meio ambiente. Para eles, o Código Florestal aprovado na
Câmara consegue reunir em mais de 80 artigos o que há de mais atrasado em
matéria de legislação ambiental. “Vai na contramão do mundo. Esse Código
Florestal é um retrocesso inimaginável”, afirma Márcio Astrini, coordenador de
Campanha do Greenpeace. A diretora da WWF Brasil, Maria Cecília Wey de Brito,
diz que a manutenção do projeto como sairá da Câmara seria um “duro golpe” nas
promessas da presidenta. “Dilma Rousseff garantiu que não toleraria leis que
promovessem novas ondas de desmatamento ou anistiassem crimes florestais do
passado. Ela sabe que essas mudanças são negativas para o Brasil”, alerta Maria
Cecília. Apesar
do anunciado veto presidencial, o ambientalista Mário Mantovani, da Fundação
SOS Mata Atlântica, que conta com mais de 100 mil sócios pagantes, se diz
bastante preocupado com o texto que saiu do Congresso. “O resumo do projeto é:
o crime compensa”, afirmou Mantovani à ISTOÉ. Para ele, havia claros sinais do
que poderia ocorrer, em razão da força econômica da bancada ruralista. Mas
Mantovani esperava mais da parte do governo, que não conseguiu controlar sua
base. “O que nós vimos foi uma anistia, ampla, geral e irrestrita. Quem ainda
quer desmatar o Brasil pode fazê-lo dentro da lei”, lamenta. Mantovani explica
que o que está em jogo não é a criação de corredores de vegetação para o
mico-leão-dourado, mas a preservação da água. “Acabaram com a proteção dos
rios”, acusa. Os ambientalistas estão preocupados,
especialmente, com o artigo que transfere para os Estados a responsabilidade
pelas regras de reflorestamento nas margens de rios com mais de dez metros de
largura. “As margens de rios largos não serão recuperadas, o que favorece a
erosão e interrompe o ciclo da água”, diz a representante no Brasil da ONG The
Nature Conservancy, Ana Cristina Barros. O relator Piau também excluiu da
definição de Áreas de Preservação Permanente (APPs) os chamados apicuns e
salgados, as partes dos manguezais mais importantes para a produção de camarão.
A medida havia sido aprovada pelo Senado, mas saiu do relatório por pressão dos
produtores do crustáceo da região Nordeste. Quanto às APPs, o relator realizou
os desejos dos ruralistas e retirou da lei o trecho que determinava que
devastação nessas áreas, se localizadas dentro de Unidades de Conservação,
teriam de ser recuperadas. Pelo novo texto, serão consideradas áreas
consolidadas, cujas “benfeitorias” devem ser respeitadas pela União. O projeto aprovado na Câmara concede
outras vantagens aos comandantes do agronegócio. Proíbe a divulgação do
Cadastro Ambiental Rural, que mostra o tamanho das propriedades. Sem o acesso
público ao cadastro, fica impossível fiscalizar se os agricultores estão
cumprindo a legislação. Hoje, 80% das terras brasileiras estão nas mãos de
menos de 20% de proprietários. A única regra que os ruralistas tiveram de
engolir foi a obrigatoriedade de recomposição da vegetação nativa em Áreas de
Preservação Permanente desmatadas até julho de 2008. O relator Piau tentou
excluir esse trecho, mas foi enquadrado pelo presidente da Câmara, Marco Maia
(PT-RS), que lembrou a ele as limitações impostas pelo Regimento Interno da
Câmara. Pelas normas em vigor, o relator não pode simplesmente excluir um
trecho já aprovado pelas duas Casas do Congresso. Diante do inevitável, a
bancada ruralista prometeu reação mais à frente. “Tenho certeza de que as
gerações futuras subirão nesta tribuna para mudar essa legislação. Estarão
arrependidos dessa história de APPs e reserva legal. Vão ver que isso é tudo
conversa fiada porque o que vale mesmo é a produção de alimentos”, avisou
Moreira Mendes (PSD-RO), que preside a Frente Parlamentar de Apoio ao
Agronegócio. “O governo só ganhou essa porque foi por WO”, ironizou o relator
Piau. Na avaliação de Roberto Smeraldi,
diretor da fundação Amigos da Terra e especialista em sustentabilidade, o que
ocorreu na última rodada de votações da Câmara ultrapassou todos os limites do
que era esperado pelos mais pessimistas. Para ele, o texto do Senado incluía
elementos problemáticos, mas tinha consistência lógica e sustentação jurídica.
A lei aprovada pelos deputados vai gerar muitos contenciosos, pela fragilidade
do texto. Segundo Smeraldi, o novo Código cria uma grande insegurança jurídica,
pois não garante a proteção da floresta e ainda traz confusão fundiária, que
certamente levará a ações de inconstitucionalidade e disputas entre Estados e
entes privados, além de medidas do Ministério Público. Em resumo, trata-se de
uma lei inaplicável. Smeraldi lembra que o artigo 42, que criava benefícios
financeiros para os proprietários de florestas preservadas, acabou suprimido.
“Considerando os responsáveis pelas alterações, é óbvio que a legislação
serviria para acabar com as florestas. Mas a obsessão antiflorestal afeta até o
produtor que preserva”, diz ele. As
críticas ao novo texto não se restringem à ameaça ao futuro das florestas e dos
rios. Há também uma questão política, que envolve a postura adotada pelo Brasil
sobre desenvolvimento sustentável. Uma oportunidade para que o País mostre o
que tem feito à comunidade internacional é a Conferência das Nações Unidas
sobre Sustentabilidade, a Rio+20. O evento vai discutir as medidas adotadas
pelos países para garantir o desenvolvimento aliado à proteção do meio
ambiente. O Brasil, que se tornou referência mundial pelo avanço do manejo
florestal e sempre esteve entre os modelos de combate às mudanças climáticas,
agora terá de explicar o motivo do retrocesso. “Por essa razão, o texto não é
vetável em doses homeopáticas, pois na sua essência é uma grande anistia. O
ideal seria a presidenta Dilma encaminhar um novo texto ao Congresso em regime
de urgência urgentíssima”, diz o advogado especialista em direito ambiental
André Lima, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. A ideia já é
avaliada pelo governo, que estuda modificar 30 artigos da nova lei por meio de
uma medida provisória. O atraso da nova legislação fica ainda
mais evidente quando ela é comparada à de outros países. Um estudo do Instituto
do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e do ProForest, ligado à
Universidade de Oxford, analisou a legislação florestal de pelo menos 11 nações
e concluiu que há pelo mundo regras rígidas e claras para evitar o avanço do
agronegócio e das obras de infraestrutura nas florestas. Enquanto o Brasil cede
às exigências dos ruralistas, outros países marcham em outra direção. Adotam
políticas ambientalistas e aplicam regras e leis que impõem proteção da
cobertura florestal e normas de reflorestamento. No Reino Unido, por exemplo, o
governo proíbe radicalmente o avanço da agricultura sobre as florestas. A
conversão dessas áreas só é permitida para obras de infraestrutura, com
autorização oficial e provas suficientes de que não havia alternativa para
obras em outros locais.
A Europa tem as experiências de
reflorestamento mais bem-sucedidas. Na Alemanha, o Estado proíbe a invasão de
terras de florestas pelo agronegócio e autoriza a exploração de madeira nas
florestas somente depois de um longo processo burocrático e com a condição de um
acordo de recomposição e manejo das áreas devastadas. A Lei Florestal
estabelece que, uma vez concedida autorização para cortar árvores, o que for
extraído precisa ser recuperado num limite razoável de tempo e prevê multa para
quem descumprir ou ignorar esses prazos. O estudo mostra ainda que em grande
parte dos países o reforço da legislação ambiental veio depois que já se tinha
perdido uma proporção elevada das florestas. Agora, se depender da Câmara dos
Deputados, o Brasil ensaia a flexibilização das normas que por décadas serviram
de exemplo para o mundo. Uma vergonha, que pode ser estancada com a caneta
presidencial. É preciso não mais que uma dose de bom-senso como clama um
movimento que se espalha pelas redes sociais do País: “Veta, Dilma!”
Repórteres: Octávio
Costa, Izabelle Torres e Adriana Nicácio
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